Zé do Caixão


Créditos: Andressa Moreno

José Mojica Marins, o Zé do Caixão, nasceu em uma sexta-feira 13, em março de 1936 em São Paulo. Filho de um toureiro e uma cantora de tango, a família logo se mudou para os fundos de um cinema do qual o pai passou a comandar. O que possibilitou que o menino crescesse em meio à fantasia.

No dia em que completa 77 anos, o maior diretor de filmes de terror do país concede uma entrevista exclusiva ao Virgula Famosos, em que fala da sua infância, da sua carreira, de quando namorou uma filha de general para sobreviver à ditadura militar e de como ressuscitou e desgraçou, sem querer, um homem morto de mentirinha.

Confira essa e outras histórias surreais na entrevista abaixo.

Virgula Famosos – Você nasceu em uma sexta-feira 13 e acaba de completar 77 anos, que é um número bíblico. Você é supersticioso na vida real?

José Mojica Marins – Na verdade não tenho muita superstição não, apesar de escrever sobre o assunto.

Quando pequeno, você tinha medo de figuras do imaginário popular, como o lobisomem?

Eu fui um garoto sem ter esses problemas porque eu me criei dentro de um cinema. Meu pai tomava conta do cinema e nós fomos morar no cinema (em uma casa aos fundos) quando eu era muito pequeno, de dois para três anos. Então eu acabava subindo na cabine e via todo tipo de filmes.

Você se lembra do primeiro filme de horror que você viu?

Tem um que eu vi com quatro anos que ficou marcado na minha infância e me acompanhou quase pelo resto da vida. O filme era A Torre de Londres (1939, dirigido por Rowland V. Lee), estrelado pelo ator Boris Karloff que ficou conhecido por seus papéis em filmes de terror, assim como Bela Lugosi. Eu até ganhei, muitos anos depois, uma anel de sua filha Sara Karloff.

Alguma cena do filme foi mais impactante?

Havia uma cena em que uma criança enfiava a mão por debaixo de uma porta e Boris Karloff pisava na mão dela, fazendo-a gritar.

Como seus amigos os viam nessa época, já que você foi criado em um cinema?

Eles me viam como um herói porque além de eu morar em um cinema, meu pai tinha sido toureiro antes de cuidar do cinema e minha mãe tinha sido cantora de tango. Eu era filho de artistas. Eu ficava vaidoso e me sentia por cima da carne seca, todo mundo queria ser meu amigo. 

Quando você ganhou sua primeira câmera?

Com oito anos todo garoto ganhava uma bicicleta, mas eu pedi para o meu pai uma câmera. Ele me deu uma 16 mm.

E o que você filmava com oito anos?

Eu comecei a filmar tudo que era diferente como um acidente de carro, um afogamento. O pessoal mesmo já me chamava quando acontecia algo e eu ia correndo filmar.

E você exibia esse material?

Eu filmava e meu pai revelava. Depois eu pedi e ele arrumou um projetor de 16mm, isso com 11 anos. Nessa época eu tinha uma turma de garotos da minha idade e alguns um pouco mais velhos. Nós, mais uma pessoa responsável, de preferência uma mulher de 20 anos, saímos pelos bairros e algumas cidades do interior para projetar o que eu filmava e alguns filmes que meu pai alugava em 16 mm. Como os filmes eram mudos, eu narrava ao vivo.

Como era a recepção das pessoas diante de suas filmagens? Já que você tinha apenas 11 anos e registrava acidentes de carro e afogamentos…

Na verdade, gostando ou não, todo mundo procurava elogiar porque queriam ficar de bem com meu pai, para poderem entrar no cinema. Eu lembro que na época até o padre local fazia muitos elogios porque ele precisava do cinema para fazer apresentações, para arrecadar dinheiro para igreja. E isso fazia com que todo mundo me puxasse o saco.

Você tinha algum interesse além do cinema?

Eu tinha uma gibiteca. Eu comprava tudo o que era revista em quadrinhos e cheguei a ter um acervo grande. Na época, eu cobrava um tostão para a pessoa entrar e ler as revistas.

Você chegou a montar um grupo de atores para atuar em seus filmes, quando ainda era adolescente. Como foi isso?

O meu trabalho começou a ganhar repercussão. Nessa época o jornal Última Hora fez uma matéria dizendo que eu tinha nascido para fazer cinema. Com isso, começou a aparecer muita gente querendo ser artista.  E eu comecei a cobrar para fazer teste, que era uma maneira de eu arrumar dinheiro para comprar negativo. 

E no colégio, como você era visto?

Os professores chegaram a pedir que meus pais me tirassem da escola pois eu atrapalhava todo mundo porque eu só queria fazer cinema e não queria estudar.

Mas você chegou a sair do colégio?

Eles forçaram até um diploma o mais rápido possível. Eu saí com 15 para 16 anos.

Como foi seu primeiros filmes em longa metragem?

O primeiro foi Reino Sangrento (1950) que se passa na época dos faquires. Esse filme está disponível na internet, mas não sei aonde. De vez em quando minha esposa procura e acha. Depois eu fiz Sentença de Deus (1958, o primeiro em 35mm do diretor) e A Sina do Aventureiro (1958) que foi o primeiro filme brasileiro em CinemaScope (tecnologia utilizada entre 1953 e 1967 para a gravação de filmes widescreen). Depois veio Meu Destino em Tuas Mãos (1963) que teve pela primeira vez uma animação de 15 minutos antes de começar o filme.

De onde surgiu o personagem Zé do Caixão?

Zé do Caixão surgiu de um pesadelo no início dos anos 60 em que um vulto me arrastava para um cemitério. Logo ele me deixou em frente a uma lápide, lá havia duas datas, a do meu nascimento e a da minha morte. Acordei aos berros e decidi fazer um filme diferente dos que tinha feito.

 

Como a censura reagia a seus filmes?

Eu fui o mais visado pela censura. O roteiro era censurado antes mesmo de ser filmado. Aconteceu de eu ir para Brasília saber porque estava sendo censurado e os censores começarem a me apalpar para ver se eu era de carne e osso. Eu fiquei revoltado, como uma pessoa pode censurar algo se ele fala comigo como se eu fosse um extraterrestre? Mas tinha pessoas que me ajudavam e isso me animava. Eu também cheguei a namorar a filha de um general por interesse, porque tudo o que eu queria ela falava para o pai. Foi ela quem me ajudou a atravessar esse período sem ter que fugir. O Glauber Rocha e o Rogério Sganzerla diziam: “Você vai ter que fugir”, mas como eu namorava com essa filha de general, ninguém mexia comigo porque se não ela ligava para o pai e acabou né.

Você buscava pelo extraordinário no seu cotidiano?

Eu vivia em um mundo completamente à parte. Eu ficava imaginando coisas místicas, extraterrestres. Eu era muito chamado para ir a centros espíritas, tudo de estranho que aparecia. Naquela época ainda existia o jornal Notícias Populares e eu era convocado para acompanhar coisas estranhas como bebê diabo, lobisomem, casa mal-assombrada.

E dessas histórias que você acompanhou, alguma foi mais marcante?

Sim, eu cheguei até a fazer Finis Hominis (1971) inspirado nisso. Foi quando um homem famoso no bairro, do qual eu gostava bastante, morreu.  No velório, a mulher dizia: “Por que você foi embora…”, os filhos diziam: “Volta”. Então eu comecei a rezar e falar com convicção: “Volta, volta!”, e ele levantou do caixão, porque ele tinha catalepsia patológica (uma doença rara em que, durante um ataque, os membros se tornam rígidos e sem contrações, o que pode levar a crer que a pessoa está morta), embora ninguém soubesse disso na época. Na hora que ele levantou não ficou ninguém no salão, todo mundo correu, até delegado chamaram. Depois ele ficou amaldiçoado, teve que sair do bairro e ele acabou morrendo de solidão, abandonado por todo mundo.

Como você vê o cinema de terror brasileiro?

Não existe né, a não ser eu. Quem é que está fazendo filme de terror? Já tentaram, mas caíram do cavalo. O único que faz filme de terror sou eu. A minha maior decepção é que não tem ninguém para me substituir. Quando eu morrer, acabou.

Mas você acha que é falta de interesse?

Com tantas lendas, folclore… Eu não entendo porque não exploram essa parte. Parece que as pessoas tem medo de errar, não gostam. E o medo normal de mexer com forças ocultas.

Mas tem algo do cinema brasileiro que você goste?

A única coisa é Tropa de Elite (2007, de Joosé Padilha), mas ainda está muito aquém do que deveria ser. Então não temos um cinema a altura de que o Brasil merece.

Você já teve algum problema nas filmagens porque algum ator desistiu no meio, devido ao tema de seus filmes?

Já teve ator que começou depois não aguentou e disse: “Eu pago”. Mas pagar o que? Depois que causa um prejuízo geral, não tem como pagar. Já teve vários que caíram fora, tanto homem, como mulher.

Você alcançou reconhecimento da crítica, já recebeu prêmios no exterior, mas ainda tem dificuldades para produzir seus filmes. A Encarnação do Demônio, lançado em 2008, estava com o roteiro pronto há 40 anos. O Devorador de Olhos, está na gaveta há mais de 30. A que deve essa dificuldade?

A Encarnação do Demônio, várias produtoras tentaram e não conseguiram. Até que apareceu o Paulo Sacramento e disse: ”Vamos fazer”, e fez. Mas quando foi lançado teve o problema da censura (18 anos) que impediu que muita gente que queria ver o filme não pôde. Houve uma rigidez que não existiu em outros filmes. Eu acho que foi uma perseguição à minha pessoa.

 

Quais são seus projetos futuros?

O André Barcinski (que escreveu ao lado de Ivan Finotti o livro Maldito: A vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão) está preparando a minha biografia.

Mas será filmada?

O André Barcinski que está vendo isso. No momento está tudo no ar. Devo me reunir com ele no mês que vem. Mas ele disse para eu me preparar porque ele tem novas ideias e novas empreitadas dentro daquilo que eu sei fazer.

Tem alguma cena que tenha se arrependido de filmar por ter achado muito forte? Ou alguma que não filmaria?

Do que eu fiz, eu não me arrependi de nada. O que eu fiquei chateado é de coisas que eu quis fazer e os produtores não toparam. O Despertar da Besta mesmo eu tive que cortar muita coisa. 

Você acredita em fim do mundo. Acha que estamos vivendo o fim dos tempos?

Eu acho que o fim do mundo começou há muito tempo. Desde que começou a marginalidade, a perversão, a violência. Já estamos vivendo o fim do mundo. Agora para onde nós vamos, eu não sei.

Veja mais imagens de Zé do Caixão na galeria acima.


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'A minha maior decepção é que não tem ninguém para me substituir', diz Zé do Caixão