Rua Líbia


Créditos: gabriel quintão

Sem ditador ou muçulmanos, São Paulo também tem uma Líbia, 23 quilômetros ao sul do seu marco zero. A pequena rua de paralelepípedos no Jardim Ângela já foi mais parecida com sua homônima africana, que sofre com a violência de milícias mercenárias. Hoje, a Rua Líbia tem a tranquilidade de um “pedacinho do paraíso”, segundo atesta uma de suas moradoras.

Vivendo na Líbia há 33 anos, o baiano Jesuíno logo adianta: “todo mundo é bacana aqui”. E ele não pode reclamar muito mesmo, já que está erguendo as paredes da casa de seu filho exatamente em frente à sua, do outro lado da rua, tipo Trípoli e Benghazi, que são separadas (ou ligados) pelo Mar Mediterrâneo.

A família de Jesuíno é a única que freqüenta a Igreja da Congregação Cristã, que “tem 7 anos de feita”. A igreja ocupa metade do quarteirão, em frente a outra igreja um tanto mais modesta, a Pentecostal.

Ajudante na obra, destaca-se o falante Agnaldo, que mora na vizinha Rua Cipotuba (tipo um Egito ou Tunísia do Jd. Ângela). Logo se meteu na conversa sobre o ditador líbio Muammar Gaddafi com um singelo “pega uma metranca que eu cato ele”.

Protético dentário, atuando provisoriamente como ajudante de pedreiro, mostrou fluência na geografia e política da região, apesar de chamá-la de “Oriente Médico”. Em tom de brincadeira, ameaçou rasgar um alcorão, mas ficou com medo de tirar o sapato e mostrar para a câmera. Ele sabe bem que, no mundo árabe, mostrar a sola do sapato é uma ofensa grave.

Depois de revelar o verdadeiro nome, Grinaldo (do qual tem vergonha), justifica algumas opiniões extremas: “não que eu seja um racistinha”. Opiniões que causaram espanto em Antônio, filho de Jesuíno. “Te conheço há muito tempo, não sabia que você era desses, não…”

O motivo do espanto foram as críticas de Grinaldo à sexualidade e educação da presidenta Dilma Rousseff, que Antônio julga desimportantes para seu governo, e ressaltou a aprovação ao governo Lula. “O que importa é a inteligência”.

Seif al Islam, filho do líder líbio Gaddafi, negou os bombardeamentos a manifestantes na terça (22). Diferente dele, Antônio admite: “Os bagunceiros da Líbia somos nós mesmos”. Conta que, quando jovem, brincava muito na rua de terra, mas “agora a garotada não quer saber mais disso, só quer subir para a praça para fumar um”. A juventude “drogada” também foi pauta dos discursos da família Gaddafi, que acusou a oposição de distribuir pílulas a manifestantes.

De dentro da grade e depois de prender um barulhento cachorro preto, o morador da Líbia do Jd. Ângela Rogério, de 30 anos, é categórico ao afirmar que “aqui não tem guerra não”. “A rua não tem ditador… ainda”, mas faz sua ressalva ao novo vizinho. “É chatinho, mas não enche o saco”, opinou. E, como esse novo morador não quis falar com a gente, ficou sem direito de resposta.

“Os caras tão derrubando os ditadores lá para ver se fica igual no Ocidente: tudo largado, governo roubando…”, analisa Rogério, ao lado da mãe Graciete e do sobrinho de um ano e 8 meses. Apesar da consciência da nossa situação política, admitiu não saber o que faria no caso de uma nova ditadura brasileira. “Acho que ia ficar dentro de casa dormindo”.

Conversando do final de um corredor depois de uma grade e um portão, Joselita foi a primeira a lembrar os tempos violentos da rua. Chegada de Muritiba, interior da Bahia, há 26 anos, contou que até 10 anos atrás “matavam gente por nada”.

O caminhão do gás não chegava na ladeira de paralelepípedos. O mercado não entregava. Nem o táxi subia a rua. “Minha filha chegava de taxi tarde da noite e tinha que vir a pé, porque nenhum taxista queria entrar aqui”. “Agora mataram tudo os (sic) trombadinhas, os que não morreram, tão presos”, é a explicação de Joselita para a paz que agora reina nessa ladeira da região conhecida como Morro do Índio.

Quem arrisca uma explicação para o fim da violência é Beatriz, 44, que vive com sua família e seu pincher idoso Pingo na base da ladeira. “Só Deus na vida desse povo”, diz ela. “O povo começou a se conscientizar e acabou a violência”. É dela a definição de que a Rua Líbia “é um pedacinho do céu”.

Paranaense de Cascavel, casada com um pernambucano, Beatriz diz ter se mudado para a Líbia já durante o processo de “pacificação”. Mas, quando lembra de 17 anos atrás, época em que se mudou para lá, conta que “se um olhasse para a cara do outro com cara feia já tava matando”.

“Ditadura no Brasil não, nunca mais!”, brada, só de pensar na possibilidade. “O povo é rebelde aqui, não ia aceitar. Aqui ninguém quer ser submisso”, disse Beatriz, que acredita na liberdade e democracia tupiniquim. “Brasileiro usa a roupa que quer, come o que quer. Lá é tudo imposição, religião, governo…”, comemora.

A rua Líbia desemboca em uma birosca que seria território proibido para qualquer bom muçulmano, na qual pouco se fala durante o carteado. Mas a idéia é clara: “Tem que matar e tacar fogo”, diz um dos clientes. “E jogar no lixo”, acrescenta uma criança que brinca na calçada. Outro cliente ainda dá uma sugestão um tanto gastronômica para o fim de Gaddafi: “mata e bebe o sangue”. Pensamos em alongar a conversa, mas quando um cliente começou a responsabilizar o outro por algumas dúzias de assassinatos nos tempos violentos da Líbia, preferimos evitar a área de conflito.


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Líbia é um "pedacinho do paraíso" no Jardim Ângela