Cantora, compositora, instrumentista e produtora musical, a paulistana Marina Decourt prepara o lançamento do seu primeiro álbum Insights Sobre Uma Cidade Cinza.
Produzido por ela própria, em parceria com Leonardo Mendes e Thiago Duar, o disco já teve lançados os singles Setembro e Dentro Desse Ser.
Agora, ela incendeia tudo com Bye Bye Babylon, terceiro e último single antes do lançamento previsto para setembro.
Neste single, Marina une seu estilo vocal jazzístico aos timbres eletrônicos da produção de Thiago Duar.
Com dez faixas, o disco tem participação da moçambicana Lenna Bahule, da uruguaia Luana Baptista, Rodrigo Ciampi e do cubano Yaniel Matos.
Além de seu disco autoral, Marina também integra outros projetos como o duo AWA com a percussionista corporal austríaca Anita Gritsch, em que atua como cantora, baixista e produtora musical. É cantora no projeto de nu jazz Araruna de Thiago Duar, da banda Acajá é cantora e produtora musical.
É também cantora e compositora no NMIIMN, de Luis Lopes e Glauber Barreto. Leia entrevista em que ela fala do seu processo, machismo, o cenário da música atual, entre outros assuntos.
Como apareceu o conceito do disco novo e o que estavam buscando?
Marina Decourt – Esse disco começou há cinco anos. Eu já estava querendo, separando repertório, mas em 2013 comecei na prática a produção musical o que me trouxe a liberdade de materializar os arranjos que eu tinha feito da maneira que eu queria.
Nesse processo surgiu a track 1 do disco, a Prelude, nela eu fiz os beats e o arranjo e os músicos cobriram exatamente as linhas que eu havia criado, com muito respeito inclusive. E a partir dali, os músicos foram chegando mais, ficando mais curiosos sobre a menina que estava “fazendo ela mesma”.
Mas também não queria fazer isso totalmente sozinha, então chamei o Thiago Duar que é meu parceiro na música há dez anos e alguém que tenho muita confiança e sintonia no som, ele é multi instrumentista e gosta de várias referencias que eu tenho e que ninguém conhecia, além de ter um estudo legal em música eletrônica.
Chamei também para estar ao meu lado na produção o Léo Mendes, outro irmão de som, que tem aquele suíngue de violão só dele, uma sensibilidade muito bonita e também um estudo de integrar esses ritmos brasileiros em contextos mais modernos, eletrônicos.
As primeiras gigs que cantei na vida eram jazz, mas ia também a muitas rodas de samba, de choro e sempre fui apaixonada por música instrumental além disso participei de gigs eletrônicas, de reggae e dub, então fica difícil consolidar isso num disco só e eu tive que achar os caminhos, nisso também foi muito importante a soma do Thiago e do Léo.
E o curioso é que o disco começa com muito mais elementos, mais “sofisticado”, e vai secando, virando mais corpo, mais voz. Isso é resultado de um caminho longo de cinco anos, das coisas que foram acontecendo na minha vida, que aprendi. Esse disco conta uma história que literalmente foi vivida na prática.
Poucas mulheres são produtoras musicais e compositoras, isso é reflexo do machismo?
Marina – Aqui temos dois segmentos diferentes, o da mulher compositora e da mulher que é produtora musical.
Essa coisa da mulher que compõe já é um tabu que vem sendo quebrado há mais tempo, a mulher na indústria da música que vem especialmente dos anos 40/50 até o começo dos anos 2000 existia muito essa situação da mulher que era montada pra ser uma diva, um produto. A indústria escolhia que aquela mulher teria seu disco e esse disco era arranjado por homens, com homens instrumentistas, homens compositores, com tudo ordenado, como se a mulher bastasse ter um rosto e uma voz agradável para representar aquela indústria.
É louco pensar por exemplo, que em todo esse tempo vivemos situações onde a mulher teve que conquistar ao redor do mundo direitos básicos como o de votar -que parece algo antigo mas que na África do Sul só foi conquistado em 1993 e na Arábia Saudita em 2011-, direito a estar em ambientes de trabalho que não tinham relação com os cuidados do lar, direitos sobre seus próprios corpos e no entanto, seus repertórios eram composições que eram ordenadas a elas e em sua maioria, com tom de entretenimento.
Não que canções com tom de entretenimento sejam um problema, desde que isso seja uma escolha da intérprete e não uma imposição da indústria. Nesse mesmo tempo onde surge essa indústria montada de cantoras houveram muitas mulheres transgressoras que já rompiam o padrão como Carol Kaye, Nina Simone, Dona Ivone Lara, Tania Maria, Sister Rosetta Tharpe, Joni Mitchell, Alice Coltrane, entre outras…
Especialmente nos dias de hoje existe uma luta muito intensa das mulheres para quebrar essa imposição do que elas ‘devem’ ser e também nessa luta existem muitos grupos de mulheres que vem de lugares diferentes e é importante que haja esse respeito, união e lugar de fala para todas. Então essa coisa da mulher compor e ser vai crescendo conforme a liberdade e o espaço da mulher crescem também. Acredito que a mulher compositora sempre esteve, só não estava o espaço para ela se expressar.
Na produção musical ainda é bem menor a quantidade de mulheres, talvez por uma questão de acesso a esse mundo também. Trabalho em estúdios de música há dez anos, nestes 10 anos apenas uma vez vi uma mulher conduzir uma gravação da técnica de som. Nos cursos de produção musical existe uma proporção de quatro mulheres para 20 homens em sala. Nos trabalhos em que fui produtora musical, conto nos dedos de uma mão as vezes em que não houve um homem querendo interferir na minha produção, das vezes em que abri o software de gravação para mostrar uma música e algum homem após ouvir um compasso da música começou a interferir, a alterar o timbre das coisas no meu projeto sem minha autorização…
Se fosse um homem ali eles jamais interfeririam dessa maneira, poderiam comentar ou sugerir mas não colocariam a mão no projeto, entende? Essas situações são bem chatas e às vezes inconscientes e automáticas, resultado de toda essa cultura do machismo que estamos tentando desconstruir. Neste último ano cresceu muito o número de cantoras que me procuraram pela produção musical e nesse processo eu sempre procuro incluí-las ao máximo aos processos de produzir, desde a assimilação que tenho que ter de seus trabalhos, suas personalidades até o processo de gravar, editar e finalizar uma track pois vejo em todas nós essa sede de querer aprender, de depender menos, por causa desses espaços que estão fechados pra nós.
Houve por muito tempo uma cultura que impulsionava as mulheres a acreditarem que elas eram rivais entre si e menores que os homens nesses processos de criação e todas nós perdemos muito com isso. A união e respeito entre as mulheres é importante e poderosa.
O que está rolando de mais interessante na música hoje, na sua opinião?
Marina – Ah, tem bastante coisa! O disco da Luedji Luna me emocionou bastante, tem também um menino que canta e compõe muito, o Martins. Lenna Bahule, Irene Atienza, Mu Mbana, João Oliveira, Tiganá Santana. Projetos como Passo Torto e recentemente tem o Sambas do Absurdo que tem o Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal, este último particularmente mexeu muito comigo.
O que te leva a fazer uma música nova?
Marina – O acúmulo. Da inspiração, do amor, da alegria, da dor… Nunca tive a habilidade de ser rasa nas minhas interpretações e nos meus sentimentos e junto com a profundidade sempre a dificuldade de comunicar, de por em palavras. Compor pra mim é necessidade e terapia, é a necessidade de tudo que não está mais cabendo dentro. Sabe, eu fiz minha primeira música aos 13 anos e eu tinha na adolescência uma coisa didática rígida sobre essa criação, era bem racional, estruturado.
E há dez anos componho de maneira mais intuitiva, as coisas vão se acumulando dentro de mim e de repente eu sinto que vai sair, aí eu vou pra um canto e gravo, se eu não tenho como gravar eu perco! E quando eu ouço, me explico e me alento com essas coisas que estavam um pouco bagunçadas dentro de mim. Essas últimas músicas saíram todas assim, todas as que eu fiz pro disco foram assim, sai tudo de uma vez, letra, melodia, tudo! E quando sai, é um alívio imenso, leveza.
Que característica crê que seja a mais marcante da sua geração?
Marina – Acho que minha geração vem de uma ressaca cultural grande que existiu no final dos anos 80, anos 90 e começo dos anos 2000. Foi um período cultural bem estranho, de filtros estranhos. E acredito que minha geração já veio cansada disso, talvez pelo acesso também, né?
Hoje é bem fácil acessar informação, fazer pesquisas musicais e descobrir sons do mundo inteiro. Talvez essa seja uma marca da diversidade sonora que chega com essa geração, é mais plural, menos rotulada, não vejo mais esse papo de – “qual é o seu estilo musical?”.
E depois do samba, da tropicalia da Bahia, da bossa nova do Rio, vem chegando uma musicalidade que sai de São Paulo agora e eu vejo muito uma semente plantada por Itamar Assumpção nisso, tanto na sonoridade como no mercado independente.
Essa música que sai de São Paulo é diversa e ao mesmo tempo tem sua marca. Bastantes timbres diferentes, formações inusitadas, synths, essas produções que são refinadas mas que são sujas também. Essa geração daqui também é Brasil inteiro, porque as pessoas vem pra cá pra se encontrarem, pra trabalhar. Ninguém vem pra São Paulo pra respirar ar puro ou admirar uma bela paisagem, é muito sobre o encontro. E talvez isso defina bem essa geração, inquieta, ativa e plural.
Quais são seus valores essenciais?
Marina – Empatia, respeito e generosidade são coisas que não necessariamente vieram de casa mas que a vida me trouxe, junto também com muitos mestres, homens e mulheres, que me “adotaram” no caminho. A troca, a compreensão e o respeito pelo outro é fundamental pra qualidade das relações. Luto também pela eliminação das hierarquias especialmente nos ambientes de trabalho, onde é mais acessível o dialogo sobre isso. Todas as funções e papéis são igualmente importantes e necessários para bons resultados, ninguém é maior que ninguém. E claro, é pelo amor que eu abro os olhos todos os dias.